A Capoeira na Educação Infantil


Capoeira - Escola NRI AquarelaUma Ferramenta Metodológica para Pedagogia Social
O presente estudo tem como intuito principal discutir as bases históricas e ideológicas que fundamentam a capoeira na Educação Infantil, a partir da analise do processo de inserção da mesma no contexto escolar, suas modificações adaptativas e suas possibilidades enquanto instrumento revolucionário ou conformador para edificação de uma pedagogia social. Faremos esta abordagem estabelecendo uma analise do processo histórico de introdução da capoeira na Educação Infantil, seguido de uma discussão sobre a potencialidade pedagógica ,revolucionaria ou conformadora, da capoeira a partir do diálogo com alguns autores, ...
culminando com algumas considerações que propõem uma reflexão sobre a pratica pedagógica na Educação infantil para construção de uma sociedade mais justa, com indivíduos mais críticos, criativos e autônomos.
A capoeira, esta arte de origem controversa e que ainda desperta muita polêmica, emergiu no bojo das camadas populares e adentra as instituições públicas e privadas de forma arrebatadora e efusiva, sendo capaz de em pouco mais de quatrocentos anos de trajetória estar presente na maior parte das escolas, clubes, universidades, academias, dentre outros, se firmando com força em vários países do mundo, força esta, que ora estamos precisando verificar, os interesses ideológicos que estão sendo defendidos nas entrelinhas de sua expansão pelo mundo e, em particular, na Educação Infantil.
É importante se lembrar que este fenômeno, chamado capoeira, não surgiu de forma instantânea, ou seja, ao longo de sua história inúmeras barreiras foram rompidas para que a mesma se transformasse “de luta marginal a uma alternativa educacional”, e é justamente sobre o processo de inserção da capoeira nas instituições de ensino, em particular as de Educação Infantil, que discutiremos neste artigo. Analisando as possibilidades da capoeira enquanto ferramenta metodológica na construção de uma pedagogia social ou sua utilização como instrumento alienador para manutenção da lógica capitalista.

Partindo dos princípios de que a capoeira, ao longo de sua história, passou por uma série de transformações para firmar seu espaço no ambiente escolar e que a escola funciona, na maioria das vezes, como um aparelho ideológico do estado, que por sua vez estará sujeito aos ditames do capital, tentaremos aqui traçar um painel desta dialética relação entre a capoeira e a escola.
Para compreender os conflitos desta relação, precisamos lembrar que o surgimento da escola teve suas bases associadas a uma estratégia de manutenção da diferença entre a classe operária e a classe burguesa, sendo esta última beneficiada pela manutenção ideológica garantida pela escola, pois ali estariam garantidos os princípios de construção da separação entre ¨fazer e pensar¨, ¨corpo e mente¨ e etc..., princípios estes que resistem até os dias atuais. Segundo Dangeville (1978):
Todo sistema de ensino da sociedade capitalista assenta no racionalismo burguês, ou seja um idealismo ou iluminismo que esclarece os espíritos, a massa e a matéria. Neste sentido, o princípio de ¨revelação¨ esta no seio das escolas burguesas tanto laicas como religiosas. Toda a sociedade dividida em duas classes é necessariamente idealista: a elite esclarecida dita as normas, e a massa bruta deve segui-las sem discussão. (p.35)
A partir da análise deste contexto acima, fica fácil compreender o tamanho do ¨desafio¨ e das transformações, que foram ¨necessárias¨ para enquadrar a capoeira na lógica escolar, pois a capoeiragem historicamente foi também símbolo de contestação da lógica vigente e sua fundamentação filosófica, centra-se em uma simbologia que extrapola o conceito de educação escolar, ratificando o verdadeiro conceito de educação, que não estabelecem fronteiras, nem limites para as relações de ensino-aprendizagem. Segundo Brandão (1981): Quando a escola é a aldeia, a educação existe onde não há escola e por toda parte pode haver redes e estruturas sociais, de transferência de saber de uma geração a outra, onde ainda não foi sequer criada a sombra de um modelo de ensino formal e centralizado. Porque a educação aprende com o homem a continuar o trabalho da vida. Á vida que transporta de uma espécie para outra, dentro de historia da natureza, e de uma geração a outra de viventes, dentro da historia da espécie, os princípios através dos quais a própria vida aprende a ensinar a sobreviver e a evoluir em cada tipo de ser. (p.13)
Deste conceito mais amplo de educação surgem às bases filosóficas dos ensinamentos da simbologia da capoeiragem. Assim fica fácil compreender o tamanho do abismo entre a matriz norteadora da capoeira e a forma na qual ela se apresenta hoje nas escolas de Educação Infantil, ou seja, algumas das adaptações que permearam estes anos de transformações da capoeira pela sobrevivência, esterilizaram a possibilidade revolucionária de construção de uma pedagogia social que está impregnada em algumas sociedades do continente africano que acabaram por influenciar a estruturação e reelaboração de práticas em território brasileiro, tais como a própria capoeira. Nesta perspectiva tentaremos, a partir de um diálogo com os teóricos e reflexões sobre a filosofia da capoeira transmitida oralmente pelos grandes mestres desta arte, organizar um breve levantamento histórico da capoeira e analisar algumas possibilidades de intervenção da capoeira para uma pedagogia social na Educação Infantil.
Da luta marginal a uma alternativa educacional
Por volta da década de trinta, através da criação e oficialização legal da Luta Regional Baiana (Capoeira Regional), estruturada por Manoel dos Reis Machado (Mestre Bimba) e seus discípulos, a capoeira ganha uma nova roupagem que abre a possibilidade de institucionalização da mesma, pois pela primeira vez a sociedade reconhecia e decodificava os símbolos que fundamentavam a prática de ensino da capoeira, por meio de um método sistematizado e escrito que poderia facilmente ser implantado em diversas instituições, fato este que aliado a uma conjuntura política que estimulava ideais nacionalistas pela forte influência do “Estado Novo” de Vargas na defesa de um modelo de ginástica que pudesse ser genuinamente brasileiro, impulsionaram um grande crescimento e divulgação da capoeira. Um outro fator que contribuiu muito para a expansão da capoeira institucionalizada foi à condição desta alternativa apresentar-se como uma possível tentativa de cooptação e controle de uma arte que insurgiasse de forma subversiva em alguns pontos do território nacional, a exemplo das maltas do Rio de Janeiro e de outros pequenos movimentos de contestação da estrutura social vigente, que tinham na capoeira um “braço” de luta, ou seja, é importante lembrar que esta aceitação teve um preço alto, pois, a necessidade de atender os anseios de uma classe social dominante, enquadrou e remodelou a capoeira em um perfil alienador, que em última instância desarticulava sua simbologia metodológica revolucionária e a colocava a serviço do sistema.
Sobre as maltas podemos citar um relatório do ministro e secretário dos negócios da justiça referente ao ano de 1878, revelando toda a preocupação do estado com a capoeira:
Uma das mais estranhas enfermidades morais desta grande e civilizada cidade é a associação de capoeiras. Associação regularmente organizada, com seus chefes, sua subdivisão em maltas, que denominam badernas, com sinais e gírias próprias. Grupos de turbulentos, ávidos de assuadas, de lutas e de sangue, concorrem à voz de seus chefes das grandes reuniões populares e festividades públicas, para o fim de decidirem por meios violentos as suas contendas e rivalidades. (FILHO e LIMA, citado por ARAÚJO, 1997, p.175)
A partir desta transformação, a capoeira gradativamente vai inserindo-se no contexto escolar, podendo-se atribuir ao Mestre Bimba um papel importante neste processo, pois através de seu contato com estudantes universitários de Salvador, que o convidaram para ensinar na pensão onde residiam, o mestre pode ter acesso a uma camada social e a códigos e símbolos do conhecimento científico que possibilitaram a criação e sistematização deste novo modelo de ensino da capoeira. A partir daí a Capoeira inicia seu processo de institucionalização. Segundo o Mestre Itapoã, citado por Vieira (1990):
Quando o Mestre foi parar lá, os estudantes começaram a conversar com ele, que a capoeira não podia ser uma coisa perseguida pela polícia. Isso foi em 1934, quando os caras foram para Salvador estudar Medicina. O Nordeste todo ia estudar lá. Foi assim que ele começou a ter contato com a sociedade da época. (p.123)
O novo modelo de capoeira criado por Bimba e seus discípulos passa a ser reconhecido paulatinamente pela sociedade civil, sendo inclusive o Mestre Bimba agraciado com o título de Instrutor de Educação Física, mediante diploma oficial assinado por Dr. Gustavo Capanema, o então Ministro de Educação, no ano de 1957 pelo enquadramento do ensino da capoeira na legislação vigente (DECÂNIO, 1997, p.118). Apesar dos avanços proporcionados por Bimba, o mesmo só teve acesso a uma única instituição, que foi o CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva), na qual ministrou aulas de capoeira para os aspirantes da reserva. Este fato denota que a capoeira institucionalizada inicia-se com M. Bimba, mas só vem se firmar com o passar dos anos, através de outras iniciativas promovidas por seus alunos.
As transformações sofridas no processo de ensino da capoeira iniciaram a aproximação da mesma ao ambiente escolar, favorecendo seu reconhecimento e ampliando suas perspectivas com vista a se firmar como ferramenta pedagógica no processo educativo alienador do modelo capitalista. Conforme Abreu (2003, p. 20) “Sobre a oitiva: era na roda, sem a interrupção do seu curso que se dava à iniciação, com o mestre pegando nas mãos do aluno para dar uma volta com ele. Diferentemente de hoje em dia, quando é mais freqüente iniciar o aprendizado através de séries repetitivas de golpes e movimentos, antigamente o lance inicial poderia surgir de uma situação inesperada, própria do jogo: um balão boca de calça, por exemplo. A partir dele se desdobravam outras situações inerentes ao jogo, que o aprendiz vivenciava orientado pelos “toques” do mestre...”.
No Brasil, por volta do final da década de 70 e início da década de 80, tivemos um grande crescimento no número de instituições de ensino da capoeira, fato este que contribuiu muito para a pulverização da capoeira em escolas, universidades e creches, acrescentando a estes ambientes de trato com o conhecimento um toque de cultura e inúmeras possibilidades de intervenção no que se refere à atividade física, que acabam sendo respaldadas por leis e sugerida por diversos instrumentos informativos que orientam a educação escolar (RCN, PCN`s e etc).
Dentre as possibilidades de trato da capoeira no universo da Educação Infantil, destacaremos algumas faces desta arte que representam alternativas reais e concretas de intervenção pedagógica com crianças de 0 a 6 anos, que se otimizam a partir de suas interlocuções, contextualização e intencionalidade pedagógica. Dentre estas a musicalidade, o movimento, o ritual e as relações interpessoais. Vale a pena ressaltar que em nossa análise destacaremos a potencialidade na construção da pedagogia social, contudo esta só se firmará na prática a partir de uma apropriação crítica por parte dos educandos e educadores, pois a capoeira poderá facilmente estar servindo tanto à “revolução” quanto à “conformação alienada”.
Referências Bibliográficas
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A Capoeira disciplinada. Estado e cultura popular no tempo de Vargas. Revista Historia e Perspectiva. Uberlândia, n.7, p. 111-132, jul./dez. 1992.
Angelo Augusto Decanio Filho - A Herança de Mestre Bimba
* Jean Adriano: Graduado em Educaçao Fisica(UFBa),Especialista em Metologia do Ensino da Ed. Fisica(UNEB),Mestrando em Educacao(UFBa), Mestre de capoeira